Esta história tem várias variantes, a mais antiga é chinesa e remonta a 860 a.C. A versão mais conhecida é a de Charles Perrault. Este autor francês do séc. XVII pegou numa história tradicional italiana La gatta cenerentola ("A gata borralheira") e reescreveu-a. No séc. XVIII, os irmãos Grimm fizeram a sua versão a partir da de Perrault, mas substituindo a fada madrinha por pombas e uma árvore. Irene Lisboa apresenta-nos esta versão cheia de ironia, como aliás é habitual na sua escrita. Este texto permanece inédito no espólio guardado pela Arq.ª Inês Gouveia.
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Era uma vez uma enjeitadinha que foi viver para casa de um lavrador rico.
A rapariga era bonita, mas como não tinha família todos a desprezavam.
O patrão tinha três filhas que nunca punham os pés na cozinha. Mal elas viam a enjeitada lá fora, entravam a gritar:
- Já para a cozinha, tição negro, gata borralheira!
E a pobrezinha, com as lágrimas nos olhos, ia-se esconder ao canto da chaminé.
Mas quando as toleironas estreavam fatos novos ou iam às festas, mandavam-na chamar.
- Calça-me! Veste-me! Penteia-me!
E todas três a ocupavam.
A enjeitadinha não era nada invejosa. Calçava, vestia e penteava as amas e por cima ainda as gabava.
Numa noite em que as foi ajudar, disse-lhe uma delas:
- Gata borralheira, tu sabes onde nós vamos hoje?
- Eu... não, senhora!
- Vamos ao baile do príncipe. Há de lá cair o poder do mundo.
E disse-lhe outra:
- Gostavas de ir, gata borralheira?
- Eu gostava, sim, senhora.
- Não querias mais nada? Ora a paspalhona! Borralho, borralho, minha rica, para ti borralho.
E disse a terceira:
- Hoje é que o príncipe vai escolher noiva.
- Estou bonita? Olha, põe-me o laço de oiro.
Saiu toda a gente de casa e só a gata borralheira, muito triste, se deixou ficar ao pé do lume. As lágrimas caíam-lhe pela cara a baixo. Sentia-se a pessoa mais triste deste mundo.
Tanto chorou, tanto chorou que duas lágrimas lhe saltaram para as brasas.
Subiu ao ar um fumozinho e ouviu-se assim uma voz:
- Dá-me cá a mão... dá-me cá a mão...
A rapariga levantou os olhos e viu uma figurita ao de cima das brasas. Deu-lhe logo a mão. A figurita saltou para o sobrado e perguntou-lhe:
- Sabes quem eu sou?
- Não sei.
- Sou a fada da alegria. Sim, tu estás sozinha, e eu venho acompanhar-te. Porque é que estás triste?
A gata borralheira contou-lhe a sua vida. E a fada da alegria consolou-a.
- Deixa lá – disse-lhe ela. – Também tu hás de ir ao baile.
- Eu, ao baile?!
- Sim, tu, e ninguém te há de conhecer.
A fada da alegria foi com a gata borralheira para o quintal e bateu com o pé num carrinho de mão todo escangalhado.
- Pois esta carruagem é que te há de levar – disse ela.
Chegou ao pé da coelheira e soltou os coelhos, dizendo:
- Cavalos já nós temos. E aquele galo pode ser o cocheiro.
A gata borralheira não abria a boca.
- Estás vestida? – perguntou-lhe a fada.
- Outro fato não tenho – suspirou a rapariga.
- Mas esse está bem. Penteia-te.
A gata borralheira alisou os cabelos, e a fada deu com a varinha de condão no carro, nos coelhos, no galo e no fato velho.
E tudo apareceu transformado.
Que linda carruagem puxada por três parelhas de cavalos brancos! O cocheiro, de libré, fazia um vistão.
O vestido da gata borralheira, todo semeado de estrelas, parecia um céu aberto; os chapins eram de oiro.
Quando ela ia a subir para o carro quis dizer adeus à fada, mas esta já ia a fugir e só lhe disse:
- Não fiques para depois da meia noite, é para teu bem...
Entrou no baile uma princesa que ninguém sabia quem era, nem de onde vinha.
O fato dela luzia como o Sol.
E que lindos modos que tinha! Era tão formosa, tão agradável...
O príncipe só com ela é que quis dançar.
Mas antes de dar a meia-noite, a bela princesa desapareceu.
O baile pouco mais durou. O príncipe ficou tão triste que se retirou logo, e todos os convidados voltaram para suas casas.
Estava a gata borralheira ao pé do lume quando chegaram as amas.
- Anda, despacha-te! – gritaram elas.
- Gostaram do baile? – atreveu-se a perguntar a gata borralheira.
- Muito! Pudera não! Estava lá uma princesa mais linda que os amores. E tão dada! Mas tu não precisas de saber destas coisas. Para ti, borralho, borralho...
- Amanhã há outro baile.
“Eu já sabia”, ia dizer a gata borralheira, mas calou-se a tempo.
Vem o dia seguinte e tornou a gata borralheira a ir preparar as amas.
- Enfeita-me bem! – dizia uma.
- Enche-me de colares! – dizia a outra.
- E para mim o regador de brilhantes! – dizia a terceira.
Saíram todos de casa, e a gata borralheira, coitadinha, foi chorar para o pé do lume.
Saltaram-lhe duas lágrimas para as brasas e apareceu-lhe logo a fada da alegria.
A gata borralheira deu-lhe a mão e a fada perguntou-lhe:
- Queres ir ao baile, não queres?
A rapariga fez com a cabeça que sim.
- Então, anda.
Encaminharam-se as duas para o quintal e a fada soltou os coelhos e o galo, mais adiante encontrou o carro. Deu com a varinha de condão nestas coisas todas e no fato da gata borralheira e disse:
- Vê lá se ficas para depois da meia-noite...
A gata borralheira entrou para a carruagem e partiu.
Desta vez é que a princesa parecia linda! Todos a admiraram. O fato dela era como um jardim. Tinha flores de todas as qualidades.
E que bem que ela cumprimentava e fazia as vénias!
Estava talhada para rainha, ninguém o duvidava.
O príncipe só com ela é que dançou.
Mas ao dar da meia-noite a princesa desapareceu.
O baile pouco mais durou.
As amas da gata borralheira chegaram a casa e começaram logo:
- Que é do tição negro? Que é da gata borralheira?
A gata borralheira foi despi-las, e disse-lhe uma:
- Se tu a visses hoje!
- Levava um vestido de flores – disse-lhe a outra.
- Até cheirava – acrescentou a terceira.
- Quem me dera vê-la! – disse a gata borralheira.
E as três amas puseram-se à gargalhada.
- Borralho, borralho, minha rica, para ti borralho... e estás com sorte.
No terceiro dia ainda havia de haver outro baile.
A gata borralheira foi vestir as amas.
- Lava-me essas mãos – gritou uma delas. – Ontem mascarraste-me.
A rapariga demorou-se um bocadinho e quando apareceu levou uma bofetada.
Pôs-se logo a tremer e a chorar.
- Olha que me picas!
E, zumba, outra bofetada.
Quando as amas saíram, a pobrezinha foi a soluçar para o pé do lume. Deixou cair duas lágrimas nas brasas e a fada da alegria apareceu-lhe.
- Dá-me cá a mão... dá-me cá a mão... e não chores.
A gata borralheira deu-lhe a mão, e as duas foram para o quintal.
A fada soltou logo os coelhos e o galo e pôs-se à procura do carrinho. Deu com a varinha de condão em tudo isto e no fato da rapariga e foi-se embora. Mas antes disse:
- Não fiques para depois da meia-noite, vê lá o que fazes...
A gata borralheira riu-se e subiu para a carruagem.
Entrou a princesa no baile e todos ficaram de boca aberta. Assim é que ainda ninguém tinha visto nada! O fato dela fazia ondas como o mar e estava todo salpicado de peixes, mas eram de prata e de oiro.
Onde seria o reino de uma princesa tão rica e tão bela?
Até o príncipe estava intrigado. Toda a noite dançou com ela e, por fim, ia a falar-lhe em casamento.
Nisto começou a dar as badaladas da meia-noite.
A princesa fugiu de repente. Mas com a pressa deixou cair um dos chapins.
Pobre dela! Chegou ao pátio e já não viu a sua bela carruagem. Só viu os coelhos a fugir e o galo a dar às asas. Tropeçou numa coisa... era o carrinho de mãos. Pôs a mão na saia e sentiu que era a sua saia velha.
Ainda ela ia pela estrada fora, quando viu passar as amas.
- Que é que tu por aqui fazes? De onde é que tu vens? – perguntaram-lhe elas, muito admiradas.
- Venho do baile...
- Do baile? Ó rapariga, tu estás doida?! Que é que tu tinha que fazer no baile?
- Fui espreitar a tal princesa... gostava de a ver nem que fosse uma só vez.
- Ela já saiu, não penses nisso. E perdeu um chapim, coitada. Hoje é que ela ia linda! Mas não é para olhos como os teus se lhe porem em cima...
Voltou a gata borralheira para a sua vida de borralho. Lavava tachos em todo o santo dia, partia as vides e espevitava o lume! Parecia uma carvoeira, de enfarruscada que andava.
Mas de uma vez apareceu à entrada da cozinha um criado do rei. Olhou para dentro e perguntou assim:
- Há ainda mais alguma mulher nesta casa?
- Há ali a moça do borralho – responderam as amas –, mas nem vale a pena chamá-la.
- O meu senhor ordenou que nem novas nem velhas eu deixasse de convidar. – E o criado do rei encaminhou-se para a gata borralheira.
- A menina experimente lá este chapim.
- À gata borralheira é que ele há de servir! – exclamam as três amas, mortas de riso.
- Anda, calça-o, que tu é que deves ser a princesa...
A gata borralheira sentou-se no chão e calçou o chapim, depois tirou outro igual da algibeira e calçou-o também.
O criado do rei cumprimentou-a com muito respeito e convidou-a para o acompanhar ao palácio.
Mas as donas da casa entraram em dar gritos e a opor-se e a gata borralheira começou a chorar.
Saltaram-lhe duas lágrimas para o lume e a fada da alegria apareceu.
A rapariga deu-lhe logo a mão, e ela disse-lhe:
- Minha querida, se tu entrasses assim no palácio, o príncipe não deixava de te receber bem. Ele só de ti é que gosta e não é nada vaidoso. Mas eu quero que tu lhe apareças vestida de noiva.
E deu-lhe com a varinha de condão.
A gata borralheira apareceu logo toda coberta de branco desde a cabeça até aos pés.
Só parecia metida numa nuvem.
E como ainda tinha os olhos marejados de água, dizia toda a gente:
- Tão linda! Coitadinha... E ali a viver com aquelas mulheres tão más...
- Onde é que elas a teriam metido, que nunca ninguém a via?
O príncipe cheio de satisfação por ter achado, enfim, a sua querida noiva, casou logo com ela.
E as amas, que tanto a tinham maltratado, com a vergonha, nunca mais saíram à rua.
Fim